“12 ANOS ESCRAVO” E “JOGOS DE FOME”

05-01-2014 18:12
 

                  O passado e o futuro? Três filmes que fazem pensar.

                O primeiro é simplesmente brutal, de cortar a respiração, de deixar quem assiste com um nó na garganta e com o coração apertado. Não se trata de ficção mas baseado numa biografia escrita em 1853. Para um cristão que considera a Bíblia como a Palavra de Deus o que custa, de uma forma difícil de explicar, é a utilização da mesma de um modo abusivo porque distorcido e até mesmo perverso, para dar cobertura a um sistema corrupto que chegou ao cúmulo de tratar o ser humano como mercadoria. Existem inúmeros momentos do filme que apetece fechar os olhos e pensar que nada daquilo terá acontecido. Não é fácil admitir que o mundo está ali retratado como na realidade o próprio texto bíblico o retrata – no maligno, os homens são presa do império das trevas e do príncipe dos demónios e autor do mal e de toda a mentira. Felizmente que é da própria Escritura Sagrada que também surge no filme a reação e o confronto com os protagonistas do sistema esclavagista. Ao mesmo tempo constatasse pelo próprio relato de quem viveu sob aquele esquema hediondo, que esses protagonistas não viviam bem consigo mesmo, manifestavam uma profunda perturbação psicológica e espiritual. Outro aspeto que para mim é extremamente tocante e sempre foi profundamente perturbador, reside na forma como a fé instiga, estimula e alimenta a dignidade da população negra que era sujeita àqueles suplícios. A expressão musical presente nos negros espirituais é impossível de traduzir por palavras, a força, a esperança, a determinação, talvez a resignação que não se curva diante dos opressores mas que se ergue acima deles e se mostra muito mais digna em toda a sua humanidade. O filme despertou-me uma ainda maior admiração pelos que Deus usou para com todas as forças e muitas vezes com o sacrifício da própria vida, lutarem contra esse sistema, como foi o caso de William Wilberforce na Inglaterra e do pastor baptista Martin Luther King nos Estados Unidos. Como somos devedores a eles pela destruição desse estado de coisas.

                Os “Jogos da Fome” projetam-nos para um futuro, porventura não tão longínquo como poderemos pensar, e que reeditam a condição de vida que se viveu com o apodrecimento progressivo do império romano, suas lutas de gladiadores, a política do pão e do circo, a busca desenfreada de um prazer que se procurava saciar no sangue das vítimas que se defrontavam para gáudio dos espetadores.

                Os sinais que hoje vivemos são preocupantes perante o alheamento e acomodação da opinião pública e subserviência de quem devia levantar a voz contra a opressão dos mercados financeiros, da miséria para que são empurrados milhões de pessoas enquanto uma minoria continua a ver os seus lucros a aumentarem cada vez mais porque são detentores do poder financeiro.

                Como cristão considero que é imprescindível que se levante um movimento de contestação pelas políticas que tratam o ser humano, criado à imagem e semelhança de Deus, como se de mercadoria se tratasse. Não estaremos tão longe assim do modo como a sociedade a que se referem os filmes em apreço retratam. É lamentável que no caso do esclavagismo muitos cristãos e igrejas se tenham deixado aprisionar por ele e se tenham tornado inclusivamente seus paladinos acérrimos. Deus tenha misericórdia de nós e nos dê o discernimento suficiente para não embarcarmos em semelhantes embustes e comprometamos a essência do evangelho do Senhor de quem declaramos ser, o que pode ser muito diferente do que Ele mesmo considera a nosso respeito.

                Volto a repetir – os sinais são preocupantes e preocupante é também a postura que certos setores da chamada cristandade continuam a defender ou a ignorar, tanto uma como outra posição não se alinham pelos valores e essência da vida e mensagem de Jesus.

                Da postura da igreja neotestamentária há que colher o modo como cuidavam dos que sofriam de forma mais intensa as consequências do sistema social vigente, sem tornarem seus defensores e promotores, o que acaba por ser, no nosso entender, uma crassa hipocrisia e redunda no que muitos apelidam de caridadezinha, muito distinta do amor cristão.

 

Samuel R. Pinheiro

3 de janeiro de 2014